Domingo às 26 de Outubro de 2025 às 01:16:36
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Comentários ofensivos e ataques acendem alerta sobre intolerância religiosa

Comentários ofensivos e ataques acendem alerta sobre intolerância religiosa

Semanas atrás, a Folha de Campo Largo noticiou e presenciou, em suas redes sociais, casos ligados à intolerância religiosa na cidade. Em uma das publicações do jornal, que trazia uma informação relacionada à fé católica, um comentário gerou indignação: “Se esse povo não se arrepender, vai morar no inferno”. A frase foi suficiente para provocar reações entre os leitores, alguns dos quais afirmaram se tratar de crime.
Pouco tempo antes, em setembro, o jornal também noticiou o caso de vandalismo em uma residência no Conjunto Miranda, utilizada como espaço para atividades religiosas. O morador relatou que fogos de artifício, ovos e até um pote de vidro foram arremessados contra o imóvel. Segundo ele, episódios semelhantes já haviam ocorrido em endereços anteriores, o que levantou a suspeita de que o ataque poderia estar relacionado à sua fé.
Diante da repetição de casos das manifestações de intolerância religiosa, a reportagem conversou com o advogado Fábio Roberto Portella, que explicou como a legislação brasileira trata esse tipo de situação, quais são as penalidades previstas e o que as vítimas podem fazer para se proteger.
Segundo o advogado, a liberdade religiosa é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal. “O bem jurídico protegido é justamente a liberdade religiosa, o respeito à crença e aos cultos”, explica Portella. Ele cita o artigo 5º, incisos VI e VIII, que asseguram a todos os brasileiros o direito à liberdade de consciência e de crença, bem como o livre exercício de cultos religiosos, com proteção aos locais de culto e suas liturgias.
O inciso VIII do mesmo artigo reforça que ninguém pode ser privado de direitos por motivo de crença religiosa. “A Constituição busca garantir que toda pessoa possa professar sua fé, ou mesmo não ter religião, sem sofrer escárnio, humilhação, desprezo ou indiferença”, afirma. Para o advogado, é dever do Estado preservar tanto o direito dos religiosos quanto o dos não religiosos, promovendo a convivência pacífica e o respeito mútuo entre as pessoas.

Quando a intolerância se torna crime
Dr. Fabio explica que, com base nessa proteção constitucional, o Código Penal de 1940 tipificou a intolerância religiosa como crime. O artigo 208 estabelece punição para quem zombar ou tratar alguém com desprezo por causa de sua crença, perturbar cerimônias religiosas ou vilipendiar publicamente atos ou objetos de culto. A pena prevista é de detenção de até um ano, além de multa. Caso haja emprego de violência, a pena pode ser aumentada em até um terço.
Além disso, o artigo 140 do Código Penal prevê o crime de injúria religiosa, que ocorre quando alguém ofende a dignidade de outra pessoa utilizando termos depreciativos ligados à religião. Nesses casos, a pena é mais severa: até três anos de reclusão e multa.
Há muitas formas de intolerância religiosa que passam despercebidas, mas são consideradas crime. O advogado cita exemplos, como desqualificar uma religião, dizendo que é “do demônio” ou “atrasada”; danificar ou pichar templos, igrejas, terreiros ou outros locais de culto; discriminar praticantes de religiões de matriz africana em escolas, condomínios ou no trabalho; recusar atendimento, emprego ou serviço por causa da religião da pessoa; compartilhar mensagens ou memes que incitem ódio contra uma fé específica nas redes sociais; ameaçar, agredir ou isolar alguém por professar determinada crença.
Já a injúria religiosa ocorre quando a ofensa é dirigida diretamente a uma pessoa. Entre os exemplos citados estão expressões como “macumbeiro sujo”, “crente fanático” ou “muçulmano terrorista”. Também se enquadram nesse crime piadas ofensivas, zombarias por gestos de fé (como rezar ou fazer o sinal da cruz) e comentários insultuosos em redes sociais.

“Vai pro inferno” é liberdade de expressão ou crime?
O advogado é categórico ao dizer que comentários como esse configuram crime. “Com certeza, esse tipo de fala pode ser classificada como crime de intolerância religiosa, previsto no artigo 208, e também como injúria ou preconceito religioso, conforme o artigo 140 do Código Penal”, afirma.
O advogado ressalta que a liberdade de expressão não é absoluta. “Ela encontra limites na honra, na dignidade e especialmente na fé da pessoa afetada. Quando esse limite é ultrapassado, estamos diante de crimes de intolerância, injúria e preconceito”, diz e completa ao dizer que liberdade de expressão não pode ser confundida com discurso de ódio. Expressar opinião é direito de todos, mas ofender, humilhar ou incitar o desprezo contra uma religião é ilegal e deve ser punido.
Sobre o episódio de vandalismo registrado em Campo Largo, Portella explica que o local usado para atividades religiosas é considerado sagrado e protegido constitucionalmente. “O artigo 5º, inciso VI, garante a proteção aos locais de culto, e o artigo 208 do Código Penal pune quem causar danos a esses espaços.”
Além da punição criminal, o responsável também pode responder civilmente, ou seja, ser obrigado a indenizar a vítima pelos danos materiais e morais. “O dano moral decorre da dor e humilhação causadas por atos de intolerância, e pode resultar em indenizações significativas”, acrescenta o advogado.
Como a vítima deve agir
De acordo com Dr. Fabio, a primeira medida é reunir provas. Se o caso ocorrer presencialmente, o ideal é tentar gravar o agressor, anotar nomes de testemunhas e registrar fotos ou vídeos do ocorrido. “Esses materiais são essenciais para o boletim de ocorrência e para uma possível ação judicial”, orienta.
Se houver vandalismo, é importante documentar os danos ao imóvel e, se possível, acionar a Polícia Militar para que o agressor seja preso em flagrante. Em casos de ameaças virtuais, a vítima deve salvar os comentários, prints e conversas e, para garantir validade jurídica, registrar uma Ata Notarial em um cartório de notas, que funciona como prova oficial.
Mesmo que o autor do ataque não seja identificado, é possível registrar o boletim de ocorrência e apresentar as provas disponíveis. “A autoridade policial tem meios de rastrear publicações e mensagens feitas pela internet”, explica.
Em situações em que a ofensa acontece “ao vivo”, por exemplo, em um evento ou local público, a orientação é semelhante. A vítima deve garantir a própria segurança, tentar registrar o ato e buscar testemunhas. “O mais importante é não reagir de forma que possa gerar confusão ou colocar a integridade física em risco. O correto é coletar provas e procurar as autoridades”, reforça o advogado.
A legislação também abrange os casos em que a ofensa é dirigida a um grupo ou comunidade religiosa, e não a uma pessoa específica. “O crime pode ser o mesmo, mas a abrangência e a condenação variam conforme o número de vítimas e o impacto coletivo”, explica Portella.
Ele diferencia que o crime de intolerância religiosa é mais amplo e envolve qualquer ato de discriminação ou impedimento de práticas religiosas. Já a injúria religiosa é mais específica, voltada a ofensas diretas à honra individual. “Em ambos os casos, o objetivo da lei é o mesmo: proteger a dignidade e a liberdade de crença”, completa.
No ambiente digital, o advogado reforça a importância de preservar o máximo de provas. “Gravações de tela, prints e especialmente a Ata Notarial são instrumentos valiosos.” Ele recomenda também anotar nomes de participantes de grupos ou páginas em que as mensagens foram publicadas, para que possam ser convocados como testemunhas e para demonstrar o alcance da ofensa.
A exclusão do comentário, segundo ele, não apaga o crime. “Mesmo que o autor apague a publicação, o dano já foi causado. A vítima deve denunciar o caso e apresentar o que tiver de registro. A palavra da vítima, quando sincera e coerente, também tem valor jurídico”, reforça Portella.

Uma sociedade mais tolerante
Dr. Fabio reflete sobre as causas e os caminhos para combater a intolerância. “A intolerância frequentemente está associada à ignorância, não por falta de estudo, mas pela recusa deliberada de aceitar a diversidade. Somente a educação ética e moral pode moldar pessoas melhores. É preciso começar pela formação das crianças e jovens, que serão os responsáveis pelo futuro.”
Por isso, reforça que a mudança começa dentro de casa, com o exemplo e o diálogo. “Uma pessoa moldada em princípios éticos e morais é a semente de uma sociedade mais justa e tolerante. Quando cada indivíduo aprende a agir com empatia e respeito, cria-se um ciclo de transformação coletiva. A convivência harmoniosa entre as crenças é o que sustenta a paz social. Ninguém precisa acreditar nas mesmas coisas, basta aprender a respeitar o direito do outro de acreditar”, finaliza.

Foto: João Souza