Foi sancionada e entrou em vigor no último dia 02 de julho, a Lei 14.181, a chamada Lei do Superendividamento, que visa aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do
Foi sancionada e entrou em vigor no último dia 02 de julho, a Lei 14.181, a chamada Lei do Superendividamento, que visa aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. De acordo com levantamentos realizados pela Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas e do SPC- Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito), ainda em 2018, cerca de 60 milhões de brasileiros estão endividados, 30 milhões desses estão superendividados. De acordo com a análise e projeções de economistas, com a pandemia, este número deve chegar à marca de 42 milhões de superendividados, reflexo em desequilíbrio econômico e social.
A Folha conversou com a Dra. Karina Magatão, professora de Direito do Consumidor e de Direito Processual Civil dos cursos de graduação e pós-graduação da PUCPR e membra do Grupo de Pesquisa em Direito do Consumo e Sociedade Tecnológica da PUCPR, que explicou que esta lei alterou o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. “São três os pilares da nova Lei: a educação financeira para o consumo, a garantia da prática de crédito responsável e a prevenção e o tratamento de situações de superendividamento.”
A especialista explica que o crédito existe e tanto as pessoas, como também todo o mercado financeiro dependem dele, porém, pode acontecer de alguém entrar em situação de endividamento invencível. “Neste caso, chamamos ela de superendividada, algo bastante comum no Brasil, especialmente porque grande parcela da população brasileira possui baixa renda e baixa escolaridade, aqui inexistem medidas efetivas de educação financeira e se pagam as mais altas taxas de juros do mundo. A própria pandemia da Covid-19 gerou um significativo endividamento e até um superendividamento dos consumidores em âmbito nacional”, completa. Ela segue explicando que o superendividamento então consiste na impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu mínimo existencial.
Entre essas dívidas encontram as operações de crédito, compras feitas a prazo e os serviços de prestação continuada – incluídos aqui a água, luz e telefonia, por exemplo. “A nova Lei veio para proteger o consumidor superendividado, na medida em que pretende prevenir e tratar o superendividamento de pessoas de boa-fé, que alcançaram tal situação por conta de incidentes da vida, como o desemprego, o divórcio, o nascimento de uma criança, uma doença, morte na família, ou mesmo de atitude impulsiva, mas sem malícia. Portanto, serão excluídos da proteção da nova Lei os consumidores que contraíram suas dívidas mediante fraude ou de má-fé, como quando se contrai intencionalmente uma dívida já com a intenção de não a quitar ou quando se contrata produto ou serviço de luxo de alto valor”, explica.
Possibilidade de recuperação judicial
Dra. Karina fala que a nova Lei traz a possibilidade de o consumidor requerer perante o juiz a abertura de um processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de uma audiência conciliatória, com a presença dos credores, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservando o mínimo existencial, assim como as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
“Se ocorrer a conciliação entre todos os presentes, o juiz homologa o acordo e a sentença descreverá o plano de pagamento. Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório em relação a todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado. O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual em, no máximo, cinco anos”, explica.
A especialista completa dizendo que exclui do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, originárias de contratos feitos propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, como é o caso da hipoteca, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.
“A repactuação de dívidas, seja de forma conciliada, seja por meio de plano judicial compulsório, é muito importante para o consumidor superendividado de boa-fé, pois permite o pagamento das dívidas ao mesmo tempo que garante um mínimo existencial, para que o consumidor não passe necessidades e possa sobreviver dignamente neste período. O superendividamento causa exclusão social e do mercado, é um estado de ruína da pessoa, seria a sua morte civil. As dívidas em excesso, o nome sujo e a inexistência de margem de crédito, além de afetarem a sobrevivência da pessoa, acarretam o seu banimento social, ofendendo frontalmente a dignidade da pessoa humana. Já era tempo de impor limites e deveres aos fornecedores de crédito, para que dividam com os consumidores o peso do superendividamento, e não fiquem apenas com o lucro”, acrescenta.
A nova lei proíbe
Os consumidores precisam ficar atentos a algumas restrições previstas pela nova lei, que servem justamente para proteger seus direitos. Dra. Karina explana que está proibido, inclusive na publicidade, “a) indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor; b) ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo; c) assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio; e d) condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas contratuais à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais”.
Assim, a professora evidencia ainda que a lei torna o fornecedor de crédito o responsável pelo crédito que ele oferece, “uma decorrência dos deveres de informação, cooperação e lealdade, oriundos da boa-fé que deve pautar a contratação entre as partes”.
Além disso, Dra. Karina fala ainda sobre pontos que foram vetados na lei. “Infelizmente foram excluídos da sua redação trechos extremamente importantes para o consumidor, como o veto à proibição da oferta de crédito ao consumidor do tipo ‘sem juros’, ‘sem acréscimo’ ou ‘juros zero’, cuja oferta é enganosa, pois os juros costumam estar embutidos nas prestações, e o veto ao trecho que limitava os níveis da margem consignável (o percentual total do rendimento que pode ser usado para pagar parcelas), que seriam de 5% do salário líquido para dívidas com cartão de crédito e 30% para outros empréstimos consignados. Foram, no todo, cinco vetos em prejuízo do consumidor”, diz.
Um ponto relevante da lei é a proibição do assédio, que acontecia principalmente com idosos, pessoas de baixa escolaridades ou com que estão com alguma doença, por parte de bancos e financeira. Elas aconteciam por meio de telefone, cartas, pessoalmente nas ruas, caixas eletrônicos, entre outros.
“A partir de agora está proibido assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se tratar de consumidor com vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio. Além de a prática se considerar abusiva, constituindo infração contra o consumidor sujeita à atuação dos órgãos de proteção, com a imposição de multa e outras sanções, o fornecedor também poderá sofrer uma ação judicial movida pelo consumidor para a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao valor principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, sem prejuízo de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor”, esclarece Dra. Karina.
Procon pode auxiliar diante de conflitos entre consumidores e fornecedores, ou mesmo pode ser aberta reclamação na plataforma consumidor.gov, um sistema extremamente fácil e acessível ao consumidor, por meio do qual muitos conflitos são solucionados de forma on-line. Além disso, o Judiciário pode ser procurado, inclusive os Juizados Especiais.
Fique atento ao assinar um contrato
Para evitar dores de cabeça no futuro, os consumidores devem ficar bastante atentos aos detalhes nos contratos, especialmente com relação à contratação de crédito. “Dentre outras informações obrigatórias, o fornecedor do crédito deverá informar o consumidor sobre: a) o custo efetivo total, que consiste em taxa percentual anual e compreende todos os valores cobrados, e a descrição dos elementos que o compõem; b) a taxa efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento; c) o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de dois dias; d) o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor; e e) o direito do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito. As informações referidas devem constar de forma clara e resumida do próprio contrato, da fatura ou de instrumento apartado, de fácil acesso ao consumidor”, orienta.
Se existir qualquer dúvida por parte do consumidor, Dra. Karina explica que isso significa que os esclarecimentos prestados pelo fornecedor não foram suficientes. Assim, o consumidor pode exigir que seja cumprido o dever de informação pelo fornecedor, que deve prestar todas as informações que ainda se fizerem necessárias, para que o consumidor possa, de forma esclarecida e consciente, decidir se realmente quer contratar. “Pedir ajuda, portanto, é preceito básico diante da dúvida”, finaliza.