A atitute, que iniciou para “forçar uma reflexão” diante de uma atitude considerada inadequada socialmente, hoje é vista como causadora de graves problemas como ansiedade e pânico em famosos e anônimos
Quem acompanha as redes sociais ou notícias na internet já deve ter se deparado com a palavra “cancelamento” em algum momento. O termo é aplicado hoje não somente para o ato de cancelar uma compra ou um serviço, mas iniciou com a premissa de “cancelar” pessoas que tivessem atitudes preconceituosas de quaisquer natureza, a fim de causar a reflexão. Entretanto, esta mesma cultura levou a comentários pesados, cyberbulling e denegrir a imagem de quem está do lado oposto da tela, gerando consequências graves, como ansiedade, pânico e depressão, além de pouco ou nenhum aprendizado no final deste ciclo, além de ser considerado um crime.
A psicóloga clínica Éllen Martins Salvador (CRP 08/24797), especializada em Terapia do Esquema, explica que muitas vezes essa é uma maneira de criar barreiras para a discussão do tema e não trazê-lo para ser debatido na comunidade. “Acompanho a prática do ‘cancelamento’ há algum tempo e percebo que inicialmente a ideia era conscientizar as pessoas de que um comportamento é errado, ao não consumir o produto daquela pessoa, principalemnte quando ela é famosa, e a intenção era boa. Infelizmente, com a liberdade de poder dizer o que quer sobre alguém, unida ao sentimento de impunidade, fez com que as pessoas seguissem o caminho contrário da educação, tornando qualquer um, famoso ou anônimo, à mercê deste julgamento sem a oportunidade de crescer e aprender sobre o assunto. Acabamos no momento de existirem atos atrelados ao puro ódio.”
A internet proporciona hoje uma sensação de liberdade bastante singular, porém, é sempre importante lembrar que é necessário respeitar o espaço do outro, conforme segue explicando Éllen. A ausência de fatores importantes na conversa como “olho no olho”, tom de voz, as expressões faciais, o toque e a presença em si podem ser fatores de risco nesta comunicação, tornando-a mal interpretada ou mais fácil de proferir comentários e xingamentos on-line. “Não existindo esses fatores, algumas pessoas quando estão usando a internet esquecem que do outro lado da tela existe uma pessoa com sentimentos, com uma história de vida e família, então sentem a liberdade de expressar suas opiniões e ataques, sem pensar nas consequências disso para o outro. Além disso, estas pessoas sentem a falsa impressão de impunidade, achando que por estar escondido atrás de uma tela não sofrerá as consequências que sofreria falando conteúdos violentos pessoalmente. Temos sempre de nos questionar: “Eu falaria algo do tipo olhando no olho da pessoa?” Se a resposta for não, repense se deve postar”, orienta.
Pois, conforme explica a psicóloga, as reações dependem da personalidade de quem lerá aquele comentário e posicionamento. Enquanto algumas usarão como recurso para ganhar “fama”, outras poderão se sentir extremamente abaladas. Em casos mais graves, essas críticas exacerbadas na internet poderão desencadear crises de ansiedade, depressão, isolamento social e até mesmo pensamentos suicidas.
O lado de quem ataca
A psicóloga também trouxe o lado de quem acaba atacando, gratuitamente, outras pessoas. “Se existe tamanha energia de ódio canalizada para outras pessoas na internet, talvez seja necessário pensar quais frustrações este individuo está tentando descontar no outro, que não consegue resolver em sua própria vida. Imagine que você tem em suas mãos um objeto que te permite fazer cursos, aprender a bordar, cozinhar, conhecer pessoas do mundo todo, enfim, milhares de possibilidades e a escolha que você faz seja de atacar outra pessoa. É um desperdício de tempo que precisa ser avaliado. Acredito muito no poder do crescimento e aprendizado que a internet pode nos proporcionar, mas ele deve ser usado de maneira a nos aproximarmos como pessoas - infelizmente é o oposto do que acontece no momento, estamos cada vez mais polarizados”, evidencia.
“Mas ainda faço questão de ressaltar que a discussão de problemas sociais relevantes é extremamente bem-vinda, podemos aprender muito sobre o que podemos melhorar como pessoas ao refletir sobre nossos comportamentos e pensamentos retrógados. O problema não está na conscientização e sim no discurso guiado apenas pelo intuito de atacar e odiar. Precisamos nos acolher e aprender juntos como melhorar, não nos afastarmos, só assim poderemos crescer como pessoas e como sociedade”, acrescenta.
Ajudando quem passa por isso
Experiente no trabalho com prevenção ao suicídio, a especialista orienta a fortalecer a rede de apoio (principalmente presencial). “A nossa razão de viver e ter uma vida que valha a pena ser vivida é a quantidade e qualidade das nossas relações - nos sentirmos amados, aceitos, pertencentes. Então mesmo que a pessoa sofra linchamento virtual, que é algo grave e extremamente aversivo, se ela tiver uma boa rede de apoio estes ataques não serão tão relevantes, pois a pessoa sabe que ela é amada e respeitada independente do que dizem nas redes. O problema é quem se relaciona apenas por estes meios, quando acontece a retirada a pessoa se vê sem nada nem ninguém com quem contar”, recomenda.
Um passo muito importante é um afastamento das redes sociais, refletir sobre o que aconteceu e um pedido de desculpas genuíno quando necessário, sem querer combater a intensidade dos ataques com mais ódio. “Podemos sempre tirar o melhor de cada situação e crescermos com elas”, finaliza.