Domingo às 24 de Novembro de 2024 às 04:46:03
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De tia à mãe: como a vida renasce com a adoção

Há vários motivos que podem fazer com que uma criança seja tirada do convívio com os pais. Um deles é a violência infantil

De tia à mãe: como a vida renasce com a adoção

Há vários motivos que podem fazer com que uma criança seja tirada do convívio com os pais. Um deles é a violência infantil. Entre 2011 e 2017, o índice de violência sexual contra crianças e adolescentes aumentou em 83%, segundo dados do Ministério da Saúde. A pesquisa mostra que a violação do corpo ainda na primeira infância acontece, em sua maioria, dentro da própria casa, sendo o agressor alguém sempre próximo. As meninas, sejam crianças ou adolescentes, são as que mais sofrem com abusos, com números alarmantes que chegam a quase 93%.

Histórias que se repetem
“Eu era um problema que as pessoas queriam se livrar”. Esse é apenas um pequeno recorte da história de A. S. , hoje moradora de Campo Largo. Ela, hoje com 31 anos, conta que foi abandonada pela mãe quando tinha apenas 2, em uma cidade do interior de São Paulo. Deixada na casa de uma senhora, ela viveu até os 12 anos sem ter nenhum tipo de vínculo com alguém da família. Junto com o falecimento da senhora, a qual ela chamava de “vó”, veio a incerteza do que ainda poderia estar guardado para ela. A mãe dela morava em um município da Região Metropolitana de Curitiba e foi para lá que ela se mudou.

Na “cidade cinza”, que era como ela via o município na época de sua chegada, ela tinha o desafio de conviver com uma pessoa estranha, que queria ser chamada de mãe, mas que nunca fez jus ao termo. “Genitora” é a palavra usada por ela, que, com um ar de alívio por ter descoberto a expressão, ressalta que a maternidade e o gerar, ser a genitora, são coisas muito diferentes. “Nem todo mundo que gera é mãe. Nem todo homem que é genitor é o pai”.

Durante o convívio, ela e a irmã foram espancadas por diversas vezes na adolescência. As agressões dentro de casa acabaram apenas quando, em uma segunda-feira, A.S. apareceu no colégio sem o uniforme. A justificativa era de que sua mãe havia queimado todas suas roupas, além dos diversos hematomas que ela carregava em todo o corpo. Diante da situação, o Conselho Tutelar foi acionado. Ela foi encaminhada a uma casa de acolhimento; sua irmã a um educandário, onde o sistema era outro. A casa de acolhimento também era conhecida, na época, como “mãe social”, uma iniciativa da Prefeitura que pagava um determinado valor para que as famílias abrigassem crianças que tinham sido tiradas de seus genitores. A.S., no entanto, tinha um padrasto, que não sabia das agressões, pois viajava a trabalho. Ele era pai biológico de sua irmã, que não deu descanso - nos 4 anos em que as meninas ficaram sob outros cuidados - às assistentes sociais, para que ele pudesse levá-las, enfim, para casa. “Ele alugou uma casa e conseguiu a guarda da minha irmã, na época com 15 anos e nós três fomos morar juntos. E foi aí que encerrou o meu ciclo no acolhimento, quando eu tinha quase 19”, conta.

A genitora dela nunca revelou quem era seu pai biológico. Por conta disso, das agressões e da rejeição sofrida, ela acredita ser fruto de violência sexual. “Minha genitora foi abandonada, ela sofreu todos os tipos de violência que uma pessoa poderia ter sofrido. E creio que eu vim disso tudo”, ressalta.

E se entrelaçam
Mas a trajetória dela ainda tinha outros capítulos para serem escritos. Sua irmã engravidou aos 18 anos, e repetiu, mais uma vez, a história de abandono conhecida por milhares de crianças. “Ela contou que estava grávida de gêmeos e que eu ia batizar a menina”, diz. “Então, desde que saiu da maternidade, ela já era minha”, complementa.

Porém, as agressões aos sobrinhos começaram cedo, com apenas 01 ano de idade. Junto, veio a rejeição. A irmã entregou as crianças para o pai, que, por sua vez, as devolveu anos depois. “Eles estavam com 7 anos, ele descobriu que não era pai biológico, disse que não queria mais e entregou para minha irmã, mas ela também não queria”. Os filhos dela, então, foram levados a uma casa de acolhimento.

Conta que adotar, diferente da gestação, sempre foi uma opção. “Eu sabia que um dia ia adotar, mas achava que seria com uns 40 anos e, de repente, eu vi meus sobrinhos ali, no acolhimento e eu tinha três dias para dar a resposta”, relembra. A resposta, claro, foi positiva. O processo de adoção durou apenas três semanas e as crianças, hoje com um novo nome na tentativa de apagar o passado, também tinham um novo lar.

Mesmo tendo superado tudo o que viveu, A.S. conta que quando lembra de sua história, ainda se pergunta o motivo de ninguém nunca a ter adotado durante a infância. Contudo, ela tem, agora, a chance de fazer com que duas crianças sejam amadas por ela e por seu marido. Sorrindo, e também com lágrimas nos olhos, A.S. se emociona. “Era minha história sendo repetida ali, eu fiz por eles o que eu gostaria que alguém tivesse feito por mim”, finaliza.