27/11/2013
'Cobrarei até a morte', diz pai que faz vigília 10 meses após tragédia na Kiss
27/11/2013
Fonte:G1.com
Foto:Bernardo Bortolotto/RBS TV
Iniciada no dia 2 de abril, a vigília de 242 dias realizada por amigos e familiares para lembrar o total de vítimas da boate Kiss não tem mais data para acabar. Dez meses após o incêndio em Santa Maria e 239 dias após o início do movimento, o grupo que se reveza diariamente em uma barraca na Praça Saldanha Marinho, no coração da cidade, diz que pretende seguir no local. O objetivo é evitar que a tragédia caia no esquecimento.
“Cobrarei até a morte. Até o final da minha vida, irei incomodar. A pior situação do ser humano é a omissão. Posso errar por excesso, mas não por omissão”, justifica ao G1 o militar da reserva Sérgio da Silva, pai de Augusto, estudante de direito que perdeu a vida no incêndio aos 20 anos.
A dor pela perda do filho levou o pai a buscar tratamento psiquiátrico e medicamentos. Mesmo assim, Sérgio tem presença no mínimo semanal na vigília. “Minha sorte é ter uma esposa equilibrada. Ela não se trata com psicólogo, prefere participar de ações sociais e se apoiar no espiritismo. Já eu me trato com psiquiatria e sigo lutando”, completa Sérgio, que também é pai de um adolescente de 17 anos.
O movimento, contudo, sofre contestações de algumas famílias de vítimas, consideradas minoria pela Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). “Quem se reveza na vigília já foi procurado por familiares pedindo que aquilo fosse encerrado. Dizem que é para deixar os mortos descansarem ou deixar a justiça nas mãos de Deus. As pessoas são livres. Mas este é um problema pessoal meu”, diz Sérgio.
Apesar do abatimento, a recente retomada de investigações e de depoimentos de servidores municipais na Polícia Civil e no Ministério Público deu novo ânimo ao movimento. Na semana passada, a delegada Luiza Souza, responsável por um inquérito sobre as licenças concedidas à boate Kiss pelo município, afirmou ao G1 que encontrou irregularidades “em todos os níveis das secretarias”.
“Íamos tirar a vigília, mas de tanto as pessoas nos importunarem, tentarem enfraquecer o movimento, vamos seguir por tempo indeterminado. Essa é a única maneira de tentar deixar presente. Se tivéssemos deixado na normalidade, já estaria tudo parado. Agora, voltaram a investigar improbidade administrativa”, diz o presidente da AVTSM, Adherbal Ferreira.
Segundo o professor e diretor da Clínica de Atendimento Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carlos Henrique Kessler, a divergência dos familiares sobre manter ou não a vigília é considerada normal e está relacionada com a maneira com as pessoas lidam individualmente com o luto.
“Esta tensão é particular, e entra a questão do coletivo. É uma tensão importante para que as pessoas manifestem. Alguns podem dizer que ‘já chega’. Mas interferir na continuidade não pode ocorrer, a dor é particular. O fato de começar a aparecer diferenças pode significar avanço. Cada um vive o episódio de uma maneira singular”, analisa.
Três inquéritos estão abertos na Polícia Civil
Atualmente, há três inquéritos na Polícia Civil em andamento: além dos documentos sobre as licenças concedidas à boate, outra investigação apura as atividades da empresa Hidramix, enquanto uma terceira tem como alvo uma suposta fraude no documento de estudo de impacto na vizinhança do prédio onde ficava a casa noturna, na Rua dos Andradas.
No mês passado, o Conselho Superior do Ministério Público devolveu o solicitando análise de novos indícios de irregularidades na emissão de alvarás para a casa noturna, além de possíveis atos de improbidade administrativa dentro da prefeitura de Santa Maria.
Questionado sobre a insatisfação das famílias diante da ausência de denúncias por improbidade administrativa contra servidores municipais, o promotor Joel Dutra, que integra a equipe do Ministério Público de Santa Maria responsável por investigar a tragédia da Kiss, voltou a salientar o caráter técnico necessário para fundamentar as acusações.
“Não podemos ceder. Já disse às famílias que gostaria de ter mais elementos para denunciar mais gente. Mas isso esbarra no que diz a lei, principalmente na questão da improbidade. Não basta estar errado, é preciso identificar dolo (quando há intenção) ou má-fé. A lei de improbidade administrativa é para ser usada contra gestores desonestos e não contra gestores desorganizados. Por isso a dificuldade”, explica.
Conforme Dutra, a reivindicação das famílias das vítimas ainda pode se tornar realidade com a retomada das investigações, mas ele admite que a possibilidade de algum servidor público ser responsabilizado pela tragédia segue remota.
“Vamos antes aguardar os trabalhos da polícia, que apura possíveis crimes nas concessões de alvarás. Em tese, haveria a possibilidade de existir falsidade de documentos, mas não teria sido cometido por funcionários e sim pelos proprietários da boate. Ainda não é possível sinalizar para improbidade administrativa. Seria fácil denunciar, mas no final todos seriam absolvidos”, analisa.
O G1 procurou a prefeitura de Santa Maria, mas não obteve retorno sobre a posição do executivo municipal frente aos protestos dos familiares.
Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, na madrugada de domingo, dia 27 de janeiro, resultou em 242 mortes. O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco.
O inquérito policial indiciou 16 pessoas criminalmente e responsabilizou outras 12. Já o MP denunciou oito pessoas, sendo quatro por homicídio, duas por fraude processual e duas por falso testemunho. A Justiça aceitou a denúncia. Com isso, os envolvidos no caso viram réus e serão julgados. Dois proprietários da casa noturna e dois integrantes da banda foram presos nos dias seguintes à tragédia, mas a Justiça concedeu liberdade provisória aos quatro em 29 de maio.
Veja as conclusões da investigação
- O vocalista segurou um artefato pirotécnico aceso no palco
- As faíscas atingiram a espuma do teto e deram início ao fogo
- O extintor de incêndio do lado do palco não funcionou
- A Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás
- Havia superlotação no dia da tragédia, com no mínimo 864 pessoas
- A espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular
- As grades de contenção (guarda-corpos) obstruíram a saída de vítimas
- A casa noturna tinha apenas uma porta de entrada e saída
- Não havia rotas adequadas e sinalizadas de saída em casos de emergência
- As portas tinham menos unidades de passagem do que o necessário
- Não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas